Criança namora de brincadeira?
Essa pergunta pode parecer simples à primeira vista, mas não deveria, pois quando é melhor analisada, desencadeia uma série de reflexões sobre a influência das práticas cotidianas dos adultos na formação dos menores.
Quando uma criança menciona ter um “namorado” ou uma “namorada”, muitos adultos tendem a encarar isso como uma brincadeira inocente, algo que faz parte do processo de crescimento e exploração do mundo ao redor.
No entanto, é importante questionar até que ponto essa atitude é saudável e se pode trazer consequências negativas para o desenvolvimento emocional e psicológico das crianças.
A adultização infantil e suas consequências
A adultização infantil é um fenômeno preocupante que tem se tornado cada vez mais comum na sociedade contemporânea.
Ela se manifesta quando as crianças são expostas precocemente a comportamentos, valores e expectativas próprias do universo adulto.
No contexto das relações amorosas, isso pode resultar na erotização precoce e até mesmo no aumento do risco de abuso infantil.
Dessa forma, ao encorajar brincadeiras que imitam as relações amorosas dos adultos, estamos, de certa forma, normalizando e validando comportamentos que estão além da capacidade cognitiva e emocional das crianças.
Agir assim pode confundir os limites entre o que é apropriado e o que não é, colocando nossos pequenos em situações desconfortáveis e até mesmo perigosas.
A importância de diferenciar namoro e amizade já na infância
É crucial que as crianças sejam ensinadas a diferenciar as brincadeiras inocentes da infância da realidade que envolve as relações amorosas próprias de outra fase.
Enquanto as brincadeiras fazem parte do processo de aprendizado e socialização dos pequenos, as relações amorosas envolvem aspectos mais complexos como compromisso, responsabilidade e maturidade emocional, que geralmente estão além da compreensão das crianças.
Sendo assim, incentivar brincadeiras que imitam o namoro pode criar expectativas distorcidas sobre o que é um relacionamento saudável, contribuindo até mesmo para a perpetuação de estereótipos de gênero e padrões de comportamento prejudiciais.
Como assim? Está complicado de entender isso…
A validação dos adultos tem um peso enorme
Por exemplo, imagine uma situação em que um grupo de crianças está brincando de “casinha” e decidem que uma delas será o “marido” ou a “esposa” de outra.
Essa brincadeira, aparentemente inocente, pode rapidamente se tornar uma imitação das dinâmicas conjugais adultas, com direito a cenas de ciúmes, discussões e até mesmo “separação”.
Os adultos podem ver e até achar engraçado, mas a criança poderá interpretar a reação como uma validação do seu comportamento. Sobretudo quando existem falas como: “Que casal bonito vocês formam!” ou “Vocês parecem mesmo um casal de verdade!”.
Com isso, os pequenos podem internalizar esses padrões de comportamento como algo aceitável e até mesmo desejável, sem compreender verdadeiramente o que estão representando.
Então devemos proibir? Não, não se trata disso.
Nesse exemplo, o problema maior é com relação à postura dos adultos ao redor que ao invés de redirecionar a brincadeira para algo mais adequado à idade das crianças, podem motivar a dinâmica de forma incorreta.
E esse tipo de incentivo pode fazer com que os pequenos acreditem que esse tipo de comportamento é normal e até esperado, mesmo que estejam apenas brincando.
Porque não é só uma brincadeira
A ludicidade é uma ferramenta poderosa no processo de desenvolvimento das crianças.
Ao brincarem, elas não apenas se divertem, mas também exploram e compreendem o mundo ao seu redor de maneira única e significativa.
É brincando que as crianças experimentam diferentes papéis, elaboram situações imaginárias e desenvolvem habilidades sociais e emocionais essenciais para o seu crescimento e aprendizado.
Por exemplo, quando um grupo de crianças brinca de “faz de conta”, como se estivessem em uma loja ou em um restaurante, estão não apenas se divertindo, mas também aprendendo sobre conceitos como troca, cooperação e interação social.
Elas exploram os diferentes papéis envolvidos nessas atividades, como o cliente, o vendedor ou o chef, e desenvolvem habilidades de comunicação, negociação e resolução de problemas.
Além disso, a brincadeira permite que as crianças experimentem situações do mundo real de forma segura e controlada.
Mas, quando as crianças brincam de “namorar”, estão usando a ludicidade para explorar e compreender as interações sociais e emocionais numa etapa que está fora do seu contexto.
Por isso, a adultização infantil pode distorcer essa experiência, levando as crianças a reproduzirem comportamentos que estão além de sua capacidade cognitiva e emocional.
O papel dos adultos na orientação sobre a adultização infantil
Mas, e quando as crianças expressam interesse ou curiosidade sobre o namoro?
Nesse caso, é responsabilidade dos adultos oferecer orientação adequada e contextualizada.
Na prática, em vez de ignorar ou minimizar essas questões, devemos estar preparados para abordá-las de maneira aberta e honesta, adaptando-nos ao nível de compreensão e maturidade das crianças e nunca o contrário.
Se o seu filho perguntar hoje para você sobre o que é “namorar”, o ideal é que você não fuja da questão ou desencoraje o assunto, aproveitando a oportunidade para iniciar uma conversa franca e educativa sobre relacionamentos e afetividade.
Explique, por exemplo, que o namoro é uma forma de expressar afeto e amizade por outra pessoa, mas que envolve responsabilidades e compromissos próprios da vida adulta e não da infância.
Reforço positivo
Mas, para além da “fala”, vem as ações.
O que nós, adultos, não podemos esquecer é de que mesmo sem estarmos atentos, podemos modelar os comportamentos dos nossos filhos nas relações interpessoais. É a chamada corresponsabilidade parental.
Sendo assim, ao demonstrar amor, respeito e comunicação aberta em seus próprios relacionamentos, oferecemos às crianças um exemplo positivo a seguir e ajudamos a construir uma base sólida para futuros relacionamentos saudáveis.
Desmistificando estereótipos de gênero desde cedo
Desde cedo, somos envoltos por mensagens sobre como devemos ser e nos comportar de acordo com nosso gênero. No entanto, é crucial desafiar essas ideias limitantes e promover uma cultura que celebre a diversidade desde a infância.
Um exemplo simples e já bem conhecido é aquele onde se reforça que uma menina deve brincar apenas com bonecas e um menino deve gostar apenas de carrinhos. O ideal é encorajar todas as crianças a explorarem seus interesses e paixões sem restrições de gênero.
Isso porque, uma menina pode adorar jogar futebol e um menino pode gostar de dançar ballet – e isso deve ser não apenas aceitável, mas celebrado.
Trata-se de respeitar os gostos pessoais sem impor regras desnecessárias que limitem as preferências de nossos filhos quanto áquilo que naturalmente apreciam.
Amizade entre meninos e meninas
É sempre válido também reforçar a ideia de que meninos e meninas podem, sim, ser amigos sem ter interesse romântico envolvido, porque é positivo promovermos que amizades verdadeiras não se restringem ao gênero.
Longe disso, todos têm o direito de construir laços significativos e afetuosos, independentemente de sua identidade de gênero.
Portanto, é fundamental que pais e responsáveis ajudem a desconstruir estereótipos de gênero desde cedo, ensinando às crianças que elas têm liberdade para serem quem são, sem se encaixarem em caixas pré-determinadas pela sociedade.
Prevenindo a adultização infantil
Num mundo onde a informação e a sexualização chegam cada vez mais cedo para as crianças, precisamos agir para protegê-las. Mas como fazer isso, na prática?
Com a proliferação da internet e das redes sociais, é comum que nossos filhos se deparem com informações e imagens que podem ultrapassar os limites de sua compreensão e maturidade.
O “X” da questão é que esses conteúdos inadequados podem gerar uma pressão, mesmo que indireta, para as crianças adotarem comportamentos próprios da vida adulta, como o namoro.
Sendo assim, reforçamos o quanto é importante manter sempre um diálogo aberto com as crianças, para que a orientação seja fácil e contínua.
Assim, os pais precisam ser abertos para conversar sobre qualquer coisa com seus filhos. Isso é importante porque quando as crianças encontram algo estranho, interessante ou curioso, elas se sentirão seguras para pedir ajuda aos seus pais, que são pessoas em quem confiam.
Educação sexual desde cedo
E não podemos esquecer da educação sexual.
Sim, pode parecer um assunto delicado, mas é fundamental que as crianças recebam informações corretas sobre seus corpos, relacionamentos e sexualidade, de acordo com a idade e o desenvolvimento delas.
Isso é fundamental, uma vez que ajuda a evitar que sejam expostas a situações que não estão preparadas para enfrentar.
Então, é possível afirmar que uma abordagem eficaz para prevenir a adultização infantil é promover o diálogo honesto sobre temas como sexualidade e relacionamentos desde cedo.
A jornada dos pais é de aprendizado contínuo
Como pais e responsáveis precisamos nos mostrar disponíveis para responder às perguntas das crianças de forma clara e empática, sem tabus ou julgamentos. Mas, não somos os donos da razão e nossas verdades nem sempre são absolutas.
Porém, o mais importante é entendermos que cada fase do desenvolvimento infantil tem seu próprio tempo e suas próprias lições a ensinar, e que os adultos devem estar preparados para isso.
Logo, nós também devemos nos munir de informações e aprendizados para cuidarmos e orientarmos nossos filhos da melhor maneira dentro dos nossos valores e princípios.
Os filhos ensinam muito e os pais sabem bem disso. Mas, para educar bem, é importante aceitarmos que a maternidade e paternidade exigirá sempre atualização sobre diferentes assuntos e, por vezes, ressignificação de nossas crenças.